Memórias afetivas que marcam e formam um tricolor




Foto: Vinicius Toledo / Explosão Tricolor

Memórias afetivas que marcam e formam um tricolor (por André Lobão)

Sempre fui apaixonado por futebol, estádio do Maracanã e pelo Fluminense, repetindo a mesma paixão da minha mãe. Aliás gostaria de compreender como essas paixões no futebol se repetem nas relações entre pais e filhos, no meu caso foi a partir de mãe.

Até hoje, dona Celeste, do alto de seus 81 anos, fica igual pinto no lixo quando assiste uma partida do Flu no Maracanã. A última que assistimos juntos foi a despedida do Fred em 9 de julho de 2022″.

Depois disso, a emoção é na TV com o “dinizismo”, assistindo os títulos do Cariocão e a inesquecível Libertadores de 2023.

A iniciação

Das primeiras idas, quando criança, lembro vagamente de jogos entre os anos de 1975 e 1976, quando com 4/5 anos , não entendia porcaria nenhuma de futebol.

A lembrança era de ficar feliz ao vestir uma camisa tricolor, colocar um short branco e calçar um par de kichutes com meiões brancos, partindo de ônibus para os jogos.

Antes de entrar no estádio minha mãe comprava laranjas que eram vendidas por ambulantes, descascadas em máquinas com manivelas. Eu adorava ver a laranja ser descascada, achava aquilo um barato!

Ao entrar, cada um com sua almofada, sim se usava almofadas para sentar no assento duro de concreto da arquibancada, ficávamos sempre atrás do gol.

Depois de nos acomodarmos era hora de mais um lanchinho e eu pedia o maravilhoso cachorro quente “Geneal”, um pão careca macio que vinha acompanhado apenas de uma solitária salsicha cozida. O vendedor com um tubinho pingava mostarda e catchup e aquilo ficava gostoso, acho que por isso o nome do sanduíche era “Geneal”. Para acompanhar o lanchinho, o bom e velho Mate – Leão que no Maracanã ainda era vendido pelos ambulantes em galões, como é até hoje nas praias do Rio.

De barriga cheia era hora da entrada dos times e de entoar os cânticos. Era a parte que eu mais gostava, pois neste momento eram distribuídos saquinhos com “pó de arroz” que eram jogados pelos torcedores para alto, assim que o Fluminense entrava no gramado.

O pó branco distribuído pelas torcidas organizadas, era em realidade a porção de farinha de trigo, talco e até cal. Lembro que minha mãe era cuidadosa em não deixar que eu esfregasse os olhos e sempre limpava minhas mãos com uma garrafinha de água.

Mas ao começar a partida eu fiquei entediado. Aquela bola pra lá e pra cá, com um monte de homens correndo atrás era de dar sono. Eu ficava brincando com os copos de mate que sobravam , enchendo-os com o que restava do pó de arroz.

Na hora do intervalo, o momento do xixi, e dona Celeste pedia ao vizinho da arquibancada que tomasse conta dos nossos lugares enquanto íamos ao banheiro.

É claro que eu ia ao feminino com minha mãe, mas sempre perguntava porque não podia ir no outro banheiro dos meninos. “Meu filho lá é o banheiro dos homens e eu não posso entrar lá”. E o garoto chato respondia: “Mas mãe, os meninos entram lá…”. Enfim, dilemas que crianças sempre pontuam, e que quase sempre nunca há respostas.

E começava o segundo tempo e o senta e levanta na arquibancada. Quando todos se sentavam, eu ficava em pé. E quando todos levantavam, eu ficava sentado.

E tinha gol do Flu, Rivelino! Minha mãe me levantava no colo, gritando gol, gol, gol , abraçando também quem estava ao nosso lado. Um momento de catarse coletiva, o gol é a explosão e purificação da alma do torcedor de futebol.

O entendimento

Anos depois, a partir de 1979 eu ficava vidrado no quando o lendário “Careca do talco” passava em nossa frente na arquibancada, eu achava que aquele sujeito cheio de pó branco era um extraterrestre. Tinha uma camisa com um escudo gigante do Flu e uma fita tricolor amarrada na careca.

Nos principais títulos dos anos 1980 – tricampeonato carioca de (83/84/85) e o Brasileirão de 1985 – eu já adolescente, vimos juntos.

Mas depois disso, o Flu entrou numa fase ruim, com os ídolos indo embora, Assis, Washington, Romerito, Paulo Victor, entre outros nos deixaram e vivemos um período de frustrações, só interrompido pelo título do Carioca de 1995, aquele que ficaria marcado pelo gol de barriga do fanfarrão do Renato Gaúcho.

Crises e lições

Os anos seguintes foram de tristeza e abandono, como por uma coincidência minha relação com minha mãe ficou distante, da mesma forma com o Fluminense. Coisas da vida. De 1996 a 1998, eu quase não mantinha contato com dona Celeste, a coisa só normalizou em 1999, retornamos aos jogos do Flu na terceirona. Tempos difíceis de reconciliação com minha mãe e o Fluminense, mas conseguimos superar e retornar a uma vida normal.

Em 2005, finalmente ganhamos um Carioca, após 10 anos. Já com mais de 30 anos de Maracanã vimos alguns jogos do título da Copa do Brasil de 2007. Mas a Libertadores de 2008, foi marcante para a dona Celeste. Por conta do meu trabalho, eu não consegui ir a nenhum jogo, ao contrário da minha mãe que foi em todos. Na final, contra a LDU, cheguei a ir ao estádio, mas não consegui comprar meu ingresso. Mas a dona Celeste entrou, com sua gratuidade obtida após madrugar na fila do ingresso. Ao final do jogo, chorando fui encontrar a minha mãe na saída do Maracanã, mas ela no meio da multidão surge serena e sem demonstrar tristeza me diz: “não foi dessa vez, esse juiz filho da puta nos roubou, mas vamos um dia conquistar essa merda, pode confiar!” – meio que me dando uma bronca.

Sim, o Maracanã é o melhor dos mundos!

Ao final de cada jogo que vou , sempre surge a lembrança de quando desço a rampa cheia de curvas do novo Maracanã, observo pais e mães conduzindo seus filhos de mãos dadas em meio a milhares de pessoas. Lembro sempre da frase, “filho, não solta a minha mão”, e ela me disse essa frase novamente naquele jogo de despedida do Fred.

Hoje, depois de mais de 45 anos, compreendi que para minha mãe aqueles jogos eram o seu escape emocional e talvez a única forma de se entreter, esquecendo por três horas as angústias da vida, o trabalho e a pressão de ser uma mãe sozinha a cuidar de um filho, em tempos que mulheres não iam a estádios de futebol sozinhas, muito menos com seus filhos pequenos.

E essa mesma sensação de escape emocional eu sinto quando estou lá no Maracanã, com meus 52 anos. Naquele segundo gol do Cano contra o Internacional, no primeiro jogo da semifinal da Libertadores de 2023, quando empatamos um jogo perdido, em que jogávamos com menos um, tive um descarrego emocional que não me esqueço nunca mas, foi uma força estranha que emanou do meu coração tricolor no momento do gol.

Atualmente minha mãe não tem mais aquele pique de antes, prefere ficar em casa acompanhando o Flu pela TV, mas tá sempre inteirada de tudo.

A terceira geração

Hoje o nosso ídolo é o Cano. Minha filha Malu de seis anos também adora a camisa do Flu, sempre pede para usar, mas não suporta assistir futebol na TV. Em um jogo contra o Santos, pelo Brasileirão 2023, a levei pela primeira vez ao Maracanã. Foi uma verdadeira realização para mim, me vi ali no lugar dela. Mas o que a menina mais curtiu mais jogo foi justamente o cachorro quente “Geneal” e o mate, agora em garrafa, do mesmo jeito que aquele menino moreninho filho da dona Celeste.

Malu até hoje comenta uma cena que presenciou de uma partida que eu estava assistindo pela TV em casa. Foi o jogo de volta da semifinal da Libertadores contra o Internacional lá em Porto Alegre. Novamente, ele, Cano, me proporcionou um descarrego emocional. Eu comecei a chorar de tanto emoção na sala da minha casa, a minha filha me perguntava: “papai você está sorrindo ou chorando?”. Eu não conseguia falar, só abraçava e jogava a menina para o alto, em uma intensa comemoração, que até hoje ela lembra.

Quando tem alguma festa infantil, em que o animador pergunta o time da criança, ela sempre ergue o braço gritando “eu!” quando vem aquela pergunta: “quem torce pelo Fluminense?”

Da mesma forma na escola quando tem festa com o tema sobre os times de futebol, ela, orgulhosamente, pede para ir com sua camisa tricolor. Bom, acho que consegui formar uma torcedora do Flu, da mesma forma que a dona Celeste. Assim segue o ciclo da vida e da arquibancada.