O Fluminense que queremos




Foto: Vinicius Toledo / Explosão Tricolor



(por Thiago Süssekind)

Em primeiro lugar, gostaria de me apresentar. Meu nome é Thiago Süssekind e venho de uma família apaixonada pelo nosso clube. Aprendi tudo que eu podia sobre o Fluminense com o meu pai, nascido em 1964. Seu ídolo era Assis, mas ele chegou a ver o Rivellino jogar. Meu avô, outro tricolor apaixonado, era de 1916. Tinha Romeu Pellicciari como ídolo e pôde acompanhar de perto jogadores como Didi, o maestro da Seleção na conquista de duas Copas do Mundo. 

Eu sou de uma outra geração, mas uma geração que também assistiu a um Fluminense vitorioso. Comecei a acompanhar todos os jogos em 2006, com sete anos de idade. Em apenas seis anos, vi o Fluminense se tornar campeão da Copa do Brasil, conquistar duas vezes o Brasileirão e chegar a duas finais continentais. Parecia questão de tempo até o título da Libertadores. Lembro que na festa pelo título nacional de 2012, após horas de espera pelos campeões, meu pai avisou: “Na próxima, não vamos não”. Mas, desde então, lá se foram dez anos, com o torcedor amargando decepções atrás de decepções.

A maior parte dos tricolores tem uma história familiar parecida com o time do coração. Boa parte da magia do futebol reside justamente nesse amor compartilhado entre entes queridos por uma força maior, que representa um passado em comum e mitológico, uma entidade na qual os pais e os filhos vivem juntos emoções que só não são indescritíveis para quem também é apaixonado por futebol. E esse passado comum que nós tricolores compartilhamos é sobre um time vitorioso, acostumado com títulos, e não com o meio de tabela.

Nossa alma de torcedor foi forjada pelo amor de nossos avôs e bisavôs, avós e bisavós, que viram um Fluminense hegemônico no Rio de Janeiro. Em um tempo no qual o Carioca importava mais do que qualquer outro campeonato, nosso time era inegavelmente o mais vitorioso dentre os rivais até os anos 70 – e isso sendo modesto. O Fluminense provavelmente era o time mais vitorioso de todo o Brasil até surgir o Santos de Pelé. Nosso DNA de torcedor foi criado nessa época, nesses tempos. Herdamos esse DNA. E não podemos perdê-lo: o Fluminense precisa disputar títulos. Essa precisa ser a nossa obsessão.

Essa obsessão nos leva a loucuras. Há pouco tempo, surgiu a notícia que o então governador Wilson Witzel havia planejado desapropriar a nossa sede histórica em Laranjeiras, pagando 300 milhões de reais ao clube. O desespero tricolor é de tal ordem que foi possível encontrar torcedores defendendo essa desapropriação do terreno nas redes sociais. Tudo em troca do dinheiro. Eu nem consigo julgar. Mesmo sendo apaixonado pela história do Fluminense, é fácil entender de onde veio o sentimento desses tricolores. Não adianta viver de museu. Um clube vive de títulos, e o DNA que corre no sangue dos tricolores está nos deixando malucos por um campeonato importante. E, principalmente, por uma Libertadores.

A busca insaciável pela coroa da América precisa ser a marca de qualquer gestão do clube. É a conquista que tem o poder de resgatar de vez o DNA vencedor que herdamos dos nossos antepassados. Para isso, é preciso recuperar financeiramente o Tricolor. Não é uma missão fácil, e se tornou ainda mais difícil desde a explosão do Clube dos 13, da qual a diretoria tricolor foi uma infeliz protagonista. A partir daquele momento, o futebol brasileiro passou a reprisar com força um modelo, que na Europa começou ainda nos anos 90, de concentração de riqueza nos times mais populares.

Olhar para a Inglaterra dá uma boa dimensão do tamanho desse problema. Os balanços financeiros de Everton, Newcastle e Manchester United mostravam que a arrecadação dos três era similar em termos quantitativos no início deste século. Em 2003, o Everton arrecadava algo como 47 milhões de libras, contra 97 milhões do Newcastle e 173 milhões do Manchester United. Dava para competir. A questão é que a diferença foi aumentando cada vez mais, de modo que, quinze anos depois, o Manchester United arrecadava 581 milhões de libras; o Everton, 171 milhões; e o Newcastle, por sua vez, 86 milhões.

É o mesmo fenômeno que acomete o futebol carioca. Se em 2003 a arrecadação dos quatro grandes era bastante parecida – o Flamengo arrecadava 53 milhões de reais, o Vasco ficava com 36 milhões, o Fluminense conseguia 32 milhões e o Botafogo fechava a lista com 16 milhões –, cerca de quinze anos depois, a realidade já era completamente diferente. Em 2017, a arrecadação do Flamengo foi de 655 milhões de reais, um número até modesto para os valores alcançados hoje em dia, com duas taças da Libertadores a mais na sala de troféus; já o Botafogo ficou com 238 milhões; o Fluminense, por sua vez, com 229 milhões; e o Vasco fechava a lista com uma arrecadação de 192 milhões, sempre em reais.

Quem nasceu com o DNA vencedor jamais poderá se contentar em ser o Everton do Liverpool ou o Espanyol do Barcelona. Tanto o Liverpool quanto o Barcelona, aliás, tiveram que olhar para outra cidade em busca de um rival à altura. Isso acende um alerta. Nosso clube nasceu com a vocação da grandeza – como diz a faixa que colocamos no Maracanã, que parafraseia o Nelson Rodrigues: “grandes são os outros; o Fluminense é enorme”. E a única forma de ver a receita explodir, a ponto de poder sonhar com uma disputa equilibrada nos clássicos contra o Flamengo das próximas décadas, é a transformação em SAF (Sociedade Anônima de Futebol). 

Isso é evidente. Para lembrar os ingleses, é o que vai fazer o Newcastle voltar a pensar em títulos. É o que coloca o Manchester City em condições de não só igualar como superar o Manchester United. Em que pese se tratar de um processo que precisa ser feito com muito cuidado, ele é imperativo para voltarmos a viver tempos de glórias. E já precisamos pensar em diferentes aspectos das ofertas que vêm pela frente. Ano passado, uma partida entre Liverpool e Manchester United foi interrompida por conta de um protesto da torcida do Old Trafford contra a família que comanda o seu time. Ao mesmo tempo, o magnata russo que comprou o Chelsea – e que deixou de ser o dono do time apenas por causa da Guerra da Ucrânia – é idolatrado pelos torcedores londrinos. Há aquisições que dão certo e outras que dão errado. Isso é natural.

Em termos de valuation, pesa contra o Fluminense não ter um estádio. Mas, em compensação, temos Xerém, um ativo muito valioso para qualquer investidor estrangeiro. O fato de sermos um time do Rio de Janeiro e contarmos com engajamento alto por parte da torcida – que, segundo as pesquisas, tem um poder aquisitivo acima da média e consome os produtos do clube com vigor – também precisa ser levado em consideração. Por outro lado, a divulgação incompleta e pouco transparente dos balancetes faz com que não tenhamos a verdadeira dimensão dos problemas financeiros atuais. Nesse sentido, é preciso haver um estudo muito sério sobre as dívidas do clube, que não sabemos ainda se está sendo realizado pelo BTG em virtude do sigilo imposto às tratativas com a atual gestão.

No meio tempo, temos uma Libertadores pela frente na próxima temporada. Ao contrário da realidade que está por vir nos próximos anos se nada mudar no futebol brasileiro, ainda podemos sonhar com título – mesmo com a diferença financeira abissal em comparação aos favoritos para o caneco. É uma missão difícil, e disso ninguém duvida. Mas a nossa história está repleta de heróis improváveis, e estamos acostumados a contrariar todo e qualquer prognóstico com campanhas inesquecíveis – pelo menos desde o “timinho” de Zezé Moreira. A minha geração, inclusive, vivenciou a arrancada de 2009, que culminou no título brasileiro do ano seguinte. É só um exemplo dentre muitos outros – e eu tenho o orgulho de dizer que estava presente, junto a meu pai, sob o temporal que caiu no dia, na partida contra o Galo que deu início àquela sequência de vitórias.

E, ao que tudo indica, o modelo associativo – que exige, por exemplo, duzentas assinaturas de sócios do clube para uma candidatura de oposição sair do papel – ainda será mantido nos próximos anos. Mesmo que a transformação em SAF já tivesse sido iniciada, seria natural que o Fluminense permanecesse como associação por alguns anos a mais. Não só pelo processo necessário para a mudança jurídica exigida, como ainda pela necessidade de estruturar um acordo vantajoso. Independentemente de quem vencer a eleição, levar-se-ia tempo negociando e avaliando as perspectivas diante de cada uma das ofertas que chegasse em Laranjeiras. Uma boa venda é a diferença entre o caminho do Chelsea ou o caminho do Everton – que, você talvez não saiba, pertence a um empresário britânico de origem persa há oito anos, sem jamais ter conseguido mudar de patamar, mesmo contratando jogadores renomados.

Se a SAF é o único caminho para o futuro – e realmente estou convencido disso –, é crucial manter o Fluminense competitivo enquanto a transformação não acontece. Ano que vem, já corremos o risco de ser o “primo pobre” do futebol do Estado do Rio de Janeiro. Além da necessidade de preparar o terreno para uma futura venda, a próxima gestão precisa profissionalizar o nosso futebol. Não deveria ser difícil interromper o ciclo vicioso de trazer apenas amigos do rei para cargos importantes para o desenvolvimento do clube – seja na base, na análise de desempenho ou na gestão do futebol – e passar a investir em nomes técnicos.  Chama a atenção como John Textor, ao assumir o comando do Botafogo, investiu logo de cara em um nome para o departamento de análise de mercado. Foi procurar o responsável pelo Centro de Informação do Atlético-MG. Certamente é um investimento que não dependeria de um aporte da SAF para ser posto em prática.

Além disso, um modelo de gestão profissional adota fluxos de decisão bem definidos. Isso é regra no meio corporativo, e deveria representar o mínimo. Afinal de contas, como definir a contratação de um jogador específico em detrimento de outro atleta? Essa escolha não deveria ser totalmente discricionária. O amadorismo levou a atual gestão a não conseguir explicar a contratação de Rafael Ribeiro, zagueiro do Náutico – que seria para o time principal, mas depois da repercussão foi rebaixado para o sub-23 –, ou de Cristiano, que custou milhões de reais graças tão só e somente ao desempenho da sua equipe na Liga dos Campeões da UEFA. É preciso amparar as decisões em evidências, algo que apenas seria possível com profissionais competentes tendo o espaço, a infraestrutura e sobretudo a confiança dos mandatários para, ao lado do técnico, resolver as carências do elenco.

Por fim, é inacreditável que um time com uma base do nível de Xerém só possa se orgulhar de ter alguns poucos jogadores formados no clube como ídolos na atualidade. A mistura entre realidade financeira difícil e uma verdadeira fábrica de talentos não deveria significar vendas prematuras e pouco rentáveis, mas sim um aproveitamento cada vez mais significativo da base no plantel principal. Como explicar a contratação de dois jogadores com mais de 35 anos que ganham centenas de milhares de reais mensais para serem meros suplentes? Apenas pelo critério inexplicável e nada racional de trazer jogadores ditos “vitoriosos” para o elenco, que jamais se sustentaria se as decisões seguissem um fluxo rígido e pautado em critérios técnicos para a formação do time. São contratações assim que tiram espaço de futuros craques formados em Xerém. Não custa lembrar que André, sempre um destaque no sub-20, teria ido para o CRB ou para o Botafogo não fosse a lesão de Hudson, hoje aposentado.

Como nunca é demais trazer exemplos de fora, o jogo paradigmático para o Palmeiras que se tornaria bicampeão da Libertadores foi a vitória por 3 a 0 contra o River Plate no Monumental de Nuñez, pela semifinal daquele torneio, na sua edição de 2020. Importante lembrar: naquele dia, os paulistas entraram em campo com um meio formado por Danilo, que tinha apenas 19 anos; Patrick de Paula, na época com 21 anos; e Gabriel Menino, de 20 anos na ocasião. Não parece nada muito distante do que poderia ser produzido por Xerém para o Fluminense, ainda mais depois de duas safras históricas: a Geração de Ouro e a Geração dos Sonhos. As duas, contudo, já foram tremendamente desperdiçadas – tanto financeira quanto esportivamente – se analisado o potencial dos jogadores que revelou.

Um grande problema do debate eleitoral do Fluminense é a falta de propostas, detalhamento, clareza de projeto e criatividade das candidaturas até o presente momento. Não vamos, nem sequer se estivéssemos unidos – oposição e situação –, mudar a realidade da instituição do dia para a noite. E, embora não baste se limitar aos chavões, é evidente que a torcida não se contenta com ter um time competitivo. O nosso DNA de torcedor é vitorioso demais para se satisfazer com somente disputar a Libertadores e não ter nenhuma perspectiva de título. Somos muito maiores do que isso. E se apenas a SAF pode resolver um problema estrutural do clube para as próximas décadas, a profissionalização do futebol – rompendo com a politicagem e o egocentrismo que marcaram tantas gestões consecutivas no único Tricolor de verdade – pode levar o time a glórias muito antes disso. A torcida merece comemorar um título em Laranjeiras de volta. Está na hora.

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