Orgulho tricolor, Xerém vira celeiro de craques do Flu e espinha dorsal da seleção brasileira




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Equipe Sub-20 do Fluminense conquistou o Campeonato Brasileiro da categoria contra o Vitória. (Foto: Bruno Haddad / Fluminense F.C.)

Há algumas semanas, o Fluminense conquistava, em Salvador, um título que coroa o atual momento que vive as divisões de base do clube carioca. Com uma campanha impecável, onde o Tricolor superou grandes bases brasileiras, como Flamengo, Internacional e São Paulo, o Flu conquistou o primeiro Campeonato Brasileiro Sub-20 organizado pela CBF.

As duas partidas decisivas da competição, contra o Vitória, mostraram bem superioridade de um trabalho bem feito no Centro de Treinamento Vale das Laranjeiras. E o mais animador é a garantia dos dirigentes tricolores de que a formação de talentos em Xerém está apenas começando a viver seu melhor momento.

– O objetivo é colocar o Fluminense como uma das melhores bases do Brasil. Se a gente está fazendo melhor do que os outros, não sei, mas estamos fazendo diferente. E eu tenho a ferramenta pra medir isso – anuncia Marcelo Teixeira, que dirigiu a base tricolor entre 2002 e 2007 e voltou a Xerém neste ano, sucedendo um trabalho de quatro anos de Fernando Simone, atual gerente de futebol do time profissional.

Teixeira se ampara em uma imensa base de dados, que alimenta desde 2007 com informações de jogadores revelados com sucesso em todo o Brasil, para medir a qualidade do trabalho feito em Xerém e projetar um futuro brilhante à espera das gerações mais jovens atualmente em Xerém, com jogadores nascidos entre 2002 e 2004.

Hoje, são meninos entre 11 e 13 anos que começam a bater bola. A projeção é de que, a partir da próxima década, a grande maioria que emplacar no futebol profissional chegará à seleção brasileira. Ou seja: Xerém pode ser a espinha dorsal do Brasil nas Olimpíadas de 2020, em Tóquio, e a geração de ouro tricolor tem condições de receber suas primeiras chances na seleção principal ainda antes da Copa do Mundo de 2022, no Qatar.

História do Centro de Treinamento de Xerém

A história do Centro de Treinamento Sylvio Kelly dos Santos – Vale das Laranjeiras, nome oficial do CT da base tricolor em Xerém, distrito de Duque de Caxias, começou muito antes da atuação de Marcelo Teixeira, Fernando Simone e tantos outros talentos que hoje estão por lá. O primeiro campo foi inaugurado em abril de 1983, meses antes do primeiro título estadual da geração de Assis, Washington, Branco & cia.

O presidente à época era Sylvio Kelly, que virou nome da própria obra. A equipe que se tornaria tricampeã carioca e campeã brasileira em 1984 chegou a treinar em Xerém, antes do então novo centro de treinamento tricolor ser destinado exclusivamente às divisões de base. A inauguração oficial aconteceu apenas em 1995.

Com o passar dos anos, embora revelasse jogadores de ponta, Xerém foi sendo entregue ao abandono. Em entrevista ao GLOBO, em 2011, o então gerente da base Fernando Simone revelou ter ficado “assustado” com o ambiente “insalubre” que encontrou ao assumir o cargo, um ano antes. Os vestiários nunca tinham sido reformados, e o campo principal tinha um buraco enorme junto ao gol. Simone conduziu uma obra que recuperou a auto-estima dos jogadores e as dependências de uma debilitada Xerém.

– O projeto tinha sete fases, com objetivos distintos. Fomos desde a infra-estrutura aos recursos humanos. Consertamos buracos tanto no teto quanto no gramado dos campos – lembra Simone.

Se antes a preocupação era apenas com a altura do muro, duplicado para evitar olheiros espiões, hoje vai além.

– O muro serve também para dar privacidade, impedir tanto olheiros quanto os pais mais ansiosos. Do lado de dentro, essa reconstrução serve como atrativo, porque o jovem chega e se sente à vontade, sem o desejo de ir embora – afirma Simone.

Hoje, o celeiro de craques do Fluminense conta com com sete campos (seis para treinos e um para jogos), refeitório, departamento médico e fisiológico, setor de psicologia e assistência social, alojamento para 106 atletas e um hotel, atualmente desativado, ao longo de um terreno com mais de 100 mil m². Os gramados se encontram em boas condições, e todos os quartos receberam ar-condicionado.

Primeiros Casos de Sucesso

A primeira safra de jogadores revelados em Xerém teve como símbolo um dos principais expoentes da base tricolor: o meia Roger Flores, hoje comentarista do canal de TV por assinatura Sportv. Roger subiu para o time profissional em 1999, ano em que o Fluminense disputava a Série C. Foi vendido ao Benfica-POR no ano seguinte por U$ 10,4 milhões (R$ 19,7 milhões à época). Roger jamais se firmou no futebol europeu, e ainda teve mais duas passagens pelo Fluminense antes de encerrar a carreira.

Foi em Portugal, mas no Porto, que outra joia de Xerém covenceria o Velho Continente dos atributos da base tricolor. Em maio de 2004, o meia Carlos Alberto, então com 19 anos – apenas dois como jogador profissional – viveu uma das maiores glórias da carreira ao levantar a taça da Liga dos Campeões da Europa, principal competição de clubes do mundo. A partir daí, o Fluminense emplacou jogadores nos principais clubes do mundo. Marcelo, lateral-esquerdo revelado em 2006, é hoje titular do Real Madrid. Thiago Silva, zagueiro que foi apelidado de “Monstro” ao despontar no tricolor em 2007, está no Paris Saint-Germain, da França. Ambos foram titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014.

– Atualmente, acho que tem mais garoto subindo junto, e jogando com mais regularidade, até pela carência no elenco. E estão sabendo aproveitar a oportunidade. Estão no caminho certo – avalia Carlos Alberto, hoje com 30 anos e jogador do Figueirense. – A formação continua, principalmente nos fundamentos, que sempre foram muito bem trabalhados. O que mudou foram as instalações. Estive lá visitando não tem muito tempo, e a estrutura está muito melhor.

O meia Danielzinho, camisa 10 do time campeão do Brasileiro Sub-20 neste ano, também aponta melhora nos serviços oferecidos aos garotos. O meia, que chegou em Xerém aos 10 anos de idade, em 2006, pegou uma época de avanço real e até virtual na preparação dos jogadores.

– Era um pouco precário, hoje em dia é mais bem cuidado – avalia. – Eles começaram a passar vídeos com lances específicos para cada posição. Isso foi entrando na cabeça de todos os jogadores. Me ensinaram a ser um meia completo, dando passes e fazendo gols.

Investimentos e Lucros de Xerém

A matemática da base tricolor não envolve apenas os gastos em infraestrutura, como os cerca de 1,5 milhão gastos nas reformas de 2011. Embora a missão seja formar jogadores para o time profissional, as necessidades financeiras do Fluminense são levadas em conta para chegar a uma resposta sem fórmula pronta: quando é a hora certa de negociar um garoto formado em Xerém?

– A missão da base está cumprida a partir do momento que o jogador sobe para o profissional e dá retorno técnico ou financeiro. O melhor dos mundos é que seja campeão no profissional e depois seja negociado, mas o mercado é que vai ditar isso – explica Marcelo Teixeira.

Segundo Teixeira, o investimento feito pelo clube em Xerém atualmente é de R$ 12 milhões por ano, uma média de R$ 1 milhão por mês. Nos anos em que Fernando Simone estava à frente, o orçamento chegava a R$ 9 milhões por ano. Não há um número fechado, mas a diretoria tricolor sempre trabalhou com a necessidade de vender até dois jogadores por ano para o balanço ser positivo.

– Não há uma regra fechada, mas se vendemos o Gérson, por exemplo, por 17 milhões de euros (R$ 60 milhões), consideramos que a conta de Xerém está paga por um bom tempo – afirma Simone.

Em 2015, o Fluminense não terá do que reclamar: Xerém vai dar muito mais lucro do que em todos os outros anos. O clube acertou, no início deste ano, as duas vendas mais caras de joias reveladas no Vale das Laranjeiras. Kenedy, atacante de 20 anos que se destaca pela velocidade e pelo chute, foi negociado com o Chelsea-ING por R$ 31,3 milhões. Já o habilidoso Gerson, meia de 18 anos, vai quebrar o recorde: embora ainda esteja no Fluminense, está acertado com o Roma-ITA por R$ 60 milhões.

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Centro de Treinamento de Xerém conta com seis campos para treinos e um para jogos. (Foto: Divulgação Fluminense)

Captação de Joias

Marcelo Teixeira define Gerson como um exemplo a ser seguido. O elogio, é claro, tem relação com a técnica refinada do meia e com seu amadurecimento precoce – chegou ao profissional com apenas 17 anos -, o que tornou possível que o clube tivesse retorno técnico antes de negociá-lo para o exterior. Só que Gerson também é símbolo do sucesso do modelo de captação de jogadores do Fluminense.

Antes de desfilar seu repertório nos gramados de Xerém, Gerson foi descoberto no futsal do Fluminense. O esporte é tratado pelo clube como uma das portas de entrada para novos talentos, assim como o projeto Guerreirinhos, com escolinhas licenciadas espalhadas em todas as regiões do país. O Fluminense conta também com sete olheiros no Brasil e dois no exterior.

– A gente definiu como quer um lateral-esquerdo, um volante, um meia, e por aí vai. Os captadores sabem o que a gente está buscando. E a gente garimpa onde tem ouro – explica Marcelo Teixeira, que trabalhou como “scout” (olheiro, em inglês) do Manchester United na América do Sul entre 2007 e 2011.

– Eu diria que essa filosofia começou comigo, cheguei do Manchester United com scouting na veia. Passa também pelo Marcelo Veiga (atual coordenador técnico da base), que está aqui há 10 anos, e o Ricardo Corrêa (chefe de olheiros), que está há seis. Claro que não acertamos o tempo todo. Mas eu te diria hoje, sem falsa modéstia, que é o melhor trabalho de captação do Brasil – completa Teixeira.

Projetos futuros

Bastaram uns poucos telefonemas para Fernando Simone deixar um emprego de 13 anos. Especialista em tecnologia da informação da IBM, ele atendeu ao chamado do então recém-eleito presidente do Fluminense, Peter Siemsen, para profissionalizar a captação de talentos em Xerém. Simone foi o encarregado de plantar as sementes de um futuro de fartura na base tricolor. Com a experiência de ex-profissional da IBM, montou o departamento de captação, uma peneira digital, para tabular dados e informações de jogadores em todo o país. Michael, atacante que está no time profissional, foi buscado em 2011, no Rio Preto, a partir dessas planilhas de computador.

Com Marcelo Teixeira, que assumiu a base do Fluminense neste ano, a entrada dos números começou a dar frutos em Xerém.Teixeira dirigiu as categorias de base do Fluminense entre 2002 e 2007, antes de trabalhar como olheiro no Manchester United. De volta ao clube em 2011, para trabalhar como ponte entre a base e o time profissional, levou para Xerém um enorme banco de informações criado por ele mesmo para responder a uma pergunta que o inquietava: afinal, como descobrir qual é a melhor base do Brasil?

– Para nós, um trabalho bem sucedido na base é pegar um menino que tem talento natural e transformá-lo em jogador de futebol do time profissional, para dar retorno técnico e financeiro ao Fluminense. Você pode privilegiar força e conquistar mais títulos na base, mas esse não é nosso objetivo – avalia Teixeira, que construiu sua filosofia de gestão da base a partir de observações tiradas de sua planilha.

– De todos os volantes revelados no futebol brasileiro desde 2007, a quantidade que nasceu no quarto trimestre é muito menor do que em todos os outros meses do ano. Por que isso acontece? Eu tenho a teoria de que, em peneiras, privilegiam os jogadores mais desenvolvidos fisicamente e acabam dispensando os que tem qualidade, mas não tem força – critica.

Em sua base de dados, atualizada diariamente, Marcelo Teixeira atribui notas a todos os jogadores revelados pelos times brasileiros a partir da geração nascida em 1983. A nota 10 é reservada aos que chegaram à seleção brasileira principal. Os atletas vendidos acima de 6 milhões de euros ou que foram titulares por duas temporadas em um clube de ponta recebem nota 7. A nota 4 vai para aqueles que foram negociados no mínimo por 3 milhões de euros, ou jogaram por mais de um ano em ligas de grande ou médio porte. O piso é a nota 1, para atletas negociados pelo menos por 1 milhão de euros.

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A expectativa é que dentro de alguma décadas o Fluminense só revele atletas de ponta. (Foto: Divulgação Fluminense)

Expectativa sobre as gerações mais jovens

Ao mergulhar em sua base de dados, Teixeira observou que raramente um clube consegue que mais de quatro ou cinco atletas por geração deem retorno técnico e financeiro. Para a turma do Fluminense nascida em 1993, no entanto, a expectativa é emplacar nove jogadores de médio e alto rendimento. Os atacantes Michael e Marcos Júnior, os volantes Willian e Rafinha e o meia Higor, todos atualmente no time principal, são representantes dessa geração, assim como o zagueiro Wellington Carvalho, no Ceará, o meia Eduardo, emprestado ao Bahia, e o lateral-direito Fabinho, negociado com o Monaco-FRA antes de chegar ao profissional e convocado por Dunga para os últimos amistosos da seleção brasileira, contra EUA e Costa Rica.

– Hoje, o Fluminense é uma das melhores bases do Brasil. E nossa curva de crescimento está bastante acentuada. O Internacional é o time que melhor trabalha a formação de jogadores, mas nós estamos crescendo logo atrás. São Paulo, Grêmio, Vitória e Santos também estão nessa lista – analisa Teixeira.

É diante desse ritmo de crescimento que Teixeira faz sua projeção ambiciosa para as gerações mais jovens de Xerém, atualmente entre 11 e 13 anos de idade: os jogadores dessa leva que emplacarem no time profissional irão conseguir, eventualmente, uma nota 10 em sua planilha. Em bom português: nas próximas duas décadas, a maioria, se não todos os jogadores revelados com sucesso pelo Fluminense, atuarão pela seleção brasileira principal.

– Se eu não estiver aqui amanhã, minha responsabilidade foi plantar uma semente. Seria necessário dispensar muita gente para ter uma descontinuidade desse trabalho. A máquina vai continuar funcionando – prevê Teixeira.

Por Explosão Tricolor / Fonte: Reportagem Especial O Globo / Fotos: Divulgação Fluminense

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