O dia que a energia tricolor transcendeu a compreensão de uma pessoa comum




Gol do Washington - Foto: Rafael Andrade/Folhapress, ESPORTES (Divulgação)



Era 21 de maio de 2008. A transpiração excessiva nas mãos, os noticiários esportivos com o verde, branco e grená em voga, o sino da escola que demorava mais do que o normal para bater, as piadas maldosas e cada vez mais aflitas dos rivais, não deixavam mentir: era dia de decisão no Estádio Jornalista Mário Filho. Dia de viver intensamente e da forma mais pura o amor pelo Fluminense, que naquela quarta-feira mística, enfrentando um outro gigante de três cores, faria cada alma presente no apoteótico Maracanã mais feliz e completa.

Eram 21h45 quando eu, no auge dos meus 10 anos de idade, finalmente pisei na arquibancada do Maracanã. Entre empurrões de outros tricolores atrasados, o mar de braços que entoava o horto mágico, a fumaça das centenas de sinalizadores, e o canto ensurdecedor de 72.910 almas obcecadas pela vitória,  eu me colocava na ponta dos meus trêmulos pés para observar, do topo de meu 1 metro e meio, o maior espetáculo que já havia presenciado.

Lembro-me como se fosse hoje o contraste entre meu encanto com meu desespero pelo incerteza que envolvia a atmosfera daquela noite, qual seria seu final. Coração disparado, canto alto, dedos entrelaçados em uma oração contínua, que só terminaria no final da noite. Começa o jogo.

A energia naquele palco transcendia a compreensão de uma pessoa comum. Torcida e  time jogavam juntos, em uma sincronia típica do Fluminense de 2008. A intensidade era tanta que desnorteou os paulistas e com poucos minutos explodiu o Maracanã com o gol de Washington. Lágrimas. Cerveja na cabeça. Joelhos no chão. Abraço no pai, no irmão, no amigo – e até nos desconhecidos da coluna de trás que admiravam meu amor infantil pelo Fluminense. Eu, que sempre fui um insuportável pessimista, não poderia imaginar começo melhor, e já me rendia à mística energia que tomava conta da apoteose tricolor.

Se no gramado a atuação do protagonista da noite oscilava, nas bancadas a regularidade do apoio da torcida impressionava. Por outro lado, já era flagrante o nervosismo. Meus olhos atônitos, fixados no gramado, por vezes lacrimejavam, mas sucumbiam a deixar escorrer lágrimas pela constante reprimenda do meu pai: “se controla, filho”. Escapava à minha autocensura, no entanto, as mãos trêmulas que balançavam no ar ao som do meu canto embargado.

Foi aos 25 minutos do segundo tempo que os 50 mil angustiados apitos que vaiavam a posse de bola do São Paulo se calaram com o gol de Adriano. Desmorono na cadeira do Maracanã. Repouso minha testa nos meus dedos ainda entrelaçados e emerjo na minha própria solidão. Me ponho em reflexão rápida e profunda: os deuses do futebol nos abandonaram – gritava em minha mente – esse clube não merece isso, essa noite não merece isso.

Sem muita opção, levanto de meu próprio isolamento e retorno à realidade. Olhos marejados e voz engasgada, que canta irresignada com o que testemunha. Neeense. Neense. Nense. Ne… bola na área, Dodô…Gol!!! Grito de alívio. Ainda dá, ainda dá, ainda dá. Grita todos os palavrões que uma criança pode conhecer. Chora de raiva, transborda esperança. Implora para Deus. Adrenalina volta, coração bate forte de novo. Os deuses do futebol não nos abandonaram!

A partir dali, então, foram cerca de 20 minutos alternando entre agonia e resignação, desânimo e esperança. O peito que estufava para gritar gol, esvaziava lentamente em ritmo de angústia. Subia ensurdecedoramente o nível do som no Maracanã: vai, vai, vai. E silenciava, em seguida, ao som de chutes na cadeira e gritos de desespero.

40 minutos do segundo tempo. A essa altura, com meus lábios secos, rosto pálido e mãos dormentes, no auge do meu pessimismo, balbuciava insistentemente implorando para que os pacientes tricolores ao redor me convencessem do contrário: “já era, já era”. Entre algumas reprimendas e ignoradas, um sábio senhor de cabelos grisalhos se abaixou em minha direção e profetizou cirurgicamente:

– Hoje a gente vai ser feliz, te prometo. Para isso você só tem que se manter firme e acreditar até o fim.

Até hoje não sei bem por quê, mas a calma daquele coração tricolor vivido e calejado encheu meu coraçãozinho tricolor de paz e esperança.

46 minutos do segundo tempo. Escanteio para o Fluminense, Thiago Neves na bola. O tempo para no Maracanã. Param os vendedores ambulantes – a essa altura, já haviam sido contaminados pela sinergia das bancadas e eram, também, tricolores. Param os policiais em plantão, os funcionários da ambulância. Para o pessoal da limpeza, que espia pelas televisões posicionadas nos corredores externos. Param de lamentar os pessimistas, de rezar os religiosos e de cantar os otimistas. Silencia o Maracanã, anunciando a calmaria que antecederia o último e derradeiro caos daquela noite. Na minha cabeça não se passava nada que não fosse aquele escanteio.

Bola na área. Desvio na cabeça do Washington e a bola enfim adormece na rede. Surto coletivo no Maracanã. 72.910 gritos libertos, vivendo o apogeu da catarse do futebol, a essência do Fluminense. Mar de lágrimas. Arrepios nos mais diversos tons de pele, que se tocavam nos mais sinceros e puros abraços. Chuva de cerveja. Apaixonados rolando pelo chão, se ajoelhando, correndo de um lado para o outro. Nos camarotes, ensandecidos grudavam seus rostos aos vidros tentando se libertar. Não existia mais uma pessoa normal naquele estádio.

Eu, que já havia deitado, ajoelhado, tirado a camisa, rezado e abraçado todos ao redor, procurava aos prantos o senhor que havia me prometido a vitória. Ao encontrá-lo no mar de braços da multidão o flagrei me olhando, também soluçando e com o rosto encharcado de lágrimas. Sem nada precisar falarmos, nos abraçamos enquanto ele confessava o motivo de sua profecia:

“Enquanto existir e resistir tricolores como nós, enquanto a arquibancada e jogadores jogarem na mesma sincronia como hoje, o Fluminense será imbatível”.

Frederico Castello Branco Speranza